top of page

Sinopse: "Quando as pessoas não dormem" é um conjunto de sete contos que mergulham nos afetos que atravessam a existência humana, explorando os temores, anseios, mortes, desejos, coragens e angústias que nos assombram. Através de narrativas intrincadas entre si e carregadas de vozes diversas, a autora nos transporta para um universo onde os limites entre realidade e ficção se dissipam. Figuras enigmáticas que assombram os sonhos e a vigília de protagonistas atormentadas por seus traumas e desejos. Com uma prosa intensa, o livro é uma provocação sobre as obscuridades da mente humana e os mistérios que habitam as sombras em todas e todos nós.

 

Leia o conto Ainda dói:

 

Ainda dói

 

Você está sentada no banco de trás do carro. Na sua mão o celular vibra vinte e três notificações. Você não quer destravar a tela não quer conferir nada não quer saber do que se trata. O motorista de aplicativo fala e fala. Você não quer conversar e mesmo mantendo respostas monossilábicas as palavras saem daquela velha boca uma após a outra. E como se um ímã atraísse um após o outro toda sorte de motoristas reacionários naquela semana. Porque agora vai piorar, eu li que vai, é só o começo dessa palhaçada toda. E assim uma depois da outra palavras de um mesmo repertório Norte Nordeste Sul, como é melhor o Sul, gente preguiçosa, na minha época, porque Deus. Você não sabe mais o que ele diz porque só quer chegar em casa. Sente uma dor muito aguda no peito, no miocárdio, e não você não tem nenhum problema cardíaco, além dos pedaços que junta dia após dia há exatos trinta e cinco anos. Não, não é a facilidade do infarto, pressão alta, arritmias. É outra coisa. Olha para frente e não acredita no que está vendo, uma fila muito grande. Um carro atrás do outro. Seu miocárdio doendo uma dor depois da outra. Você olha para o lado e a mesma fila se desenha. Então tudo para. Buzinas buzinas buzinas. Ô seu filha da puta não para eu quero ir pra casa. Ô seu arrombado olha o meu retrovisor. Todos assim, xingamentos no masculino. A violência é masculina e você sabe bem. Buzinas, motores, fumaça, um carro, outro carro, e outro e outro e mais outro e tantos outros, filhos das putas, arrombados, queremos ir para casa, buzinas, motores, fumaça. O motorista começa a falar do valor da corrida, que vamos ficar ali, que não tem jeito dona, não tem como cortar caminho. Tudo bem foda-se você pensa que só queria que ele não falasse mais nada e naquele dia bem naquele dia você esqueceu o fone de ouvido, e a irritação te faz lembrar onde ele estava, na mesinha de cabeceira ao lado da sua cama, lembra que ganhou aquela mesinha, o fone está ao lado de uma caixinha colorida, você lembra que ganhou a caixinha também. A dor no miocárdio, ai. Sente uma dor muito aguda no peito, no coração, e não você não tem nenhum problema cardíaco, além dos pedaços que junta dia após dia há exatos trinta e cinco anos. Agora o motorista está falando da sua descendência, você sabe que é um assunto que as pessoas aqui sempre tocam porque doze anos num lugar te faz saber mais ou menos por onde as conversas nativas caminham. Portugal, e ele começa a abrir a galeria de fotos de esposa, netos, filhos, pai de noventa e nove anos, a mãe morreu há dezoito, antes dela uma irmã que ele amava muito também, assim, uma atrás da outra e disse que a mãe foi de tristeza. Você foi educada para dar atenção às pessoas então você olha e diz que bonita a sua família, que lindinha a sua neta. O fone de ouvido esquecido na mesinha de cabeceira ao lado da caixinha colorida que você ganhou daquela pessoa que juntou alguns pedaços e os remendou nesse teu peito em cacos. De repente uma pausa. Lá fora a imensa fila vai dando lugar às sirenes que correm vermelhas entre as buzinas, motores, fumaça, um carro, outro carro, e outro e outro e mais outro e tantos outros, filhos das putas, arrombados, queremos ir para casa, buzinas, motores, fumaça. O último carro é o da Polícia Civil, e todo mundo sabe que quando tem polícia civil tem morte. Todo mundo sabe, não é? Ou só você que pesquisa essas na internet e outras como vídeos de pessoas em fase terminal dizendo o que veem minutos antes de morrerem. Teu peito, ai. Alguém morreu, mais um corpo espatifado na BR 101, um após o outro, entre a centenas de carros que surgem ano após ano e vão ocupando esse litoral cada vez mais insalubre, de esgotos, de carros, de buzinas, prédios, fumaça, filhas das putas, arrombados, todos querendo ir para casa. De repente um nome Melina. O motorista fala sobre a Melina. Você desbloqueia a tela do celular, vinte e três notificações. Ignora todas. Abre a página de uma rede social com notícias da cidade Pessoa morre esmagada por caminhão na BR101, devido às condições do corpo não se pode identificar o sexo. Você nunca tinha lido algo assim antes. Um corpo destruído a ponto de não se saber se era um homem, uma mulher, jovem, velho, pai, mãe, irmão. Uma massa disforme esmagada entre buzinas, motores, fumaça, um carro, outro carro, e outro e outro e mais outro e tantos outros, filhos das putas, arrombados, queremos ir para casa, buzinas, motores, fumaça. Seu miocárdio, ai. O motorista conta sobre a Melina, em mil novecentos e oitenta e dois eles se casariam e iriam embora para Portugal, ele voltaria para Aveiro, ela iria também, o primeiro amor da vida dele. Você ouve a história que vai se cruzando com uma outra história lá fora e a sua ali dentro, você está pensando que uma família não vai ter de volta em sua casa a mãe, o pai, o filho, a filha, a neta, o neto, o amor da sua vida, você pensa que nem vão poder velar, mesmo você não gostando de velórios, não gostando de caixões assim abertos, com flores e cheiro de morte saudade e despedida, você mesma não gostaria de velório, apenas ser transformada em cinzas e espalhada pelos ares. Você não gosta da morte. A Melina estava voltando de Luiz Alves, ali por Barra Velha sabe? Não eu não sei, senhor, me desculpe. Então, ela estava voltando por ali sabe, e então um caminhão bateu de frente com o carro dela. A gente ia casar aquele ano sabe, e ia pra Aveiro. Você vê os olhos marejados de alguém que acabou de atravessar um oceano distante. Uma família vai atravessar um oceano naquela tarde. É triste um amor que morre. Você pensa em todos os amores e tudo o que a palavra morrer carrega ou não em si, para reaças ou não. Para senhores que nem sabem ao certo sobre que dores e frustrações regurgitam. O fone de ouvido esquecido na mesinha de cabeceira ao lado da caixinha colorida que você ganhou daquela pessoa que juntou alguns pedaços e os remendou nesse teu peito arrebentado. Todo mundo pensa na morte, não é? Ou só você pesquisa sites no Google explicando quando um coração para de pensar. A morte. Ausência, silêncio, vazio, luto, juntar o que fica, juntar pedaços, seguir. Você não sabe o porquê, mas pergunta Ainda dói?. Desculpe, filha, nem sei por que a gente chegou nesse assunto. Os olhos cheios de água, os dele, os seus. Seu miocárdio, ai. Você sabe que não tem problemas cardíacos. Todo mundo pensa na morte, não é? Ou só você pesquisa sites no Google explicando os sintomas de um coração esmagado que ainda em insiste em bombear? Senhor, preciso descer um pouco. Tudo bem, filha, desce... posso ajudar?  Você desce. Você vê o motorista com os olhos parados no oceano de carros da BR 101, buscando Melina. Curvada, tuas mãos abraçando a barriga, aquele gosto ácido queimando o caminho de dentro, estômago, esôfago, faringe, nariz e boca. Vomita, vomita entre as buzinas, motores, fumaça, um carro, outro carro, e outro e outro e mais outro e tantos outros, filhos das putas, arrombados, queremos ir para casa, buzinas, motores, fumaça, um coração, ai.

Quando as pessoas não dormem

SKU: QuandoAsPessoas
R$ 40,00Preço
  • Mulher, mãe, educadora, feminista, produtora cultural, editora, escritora e idealizadora da editora independente Rizoma Projetos Editoriais. Decidi, criar minhas linhas de fuga por e pela arte e mediação literária. Pensar, criar, pulsar pela literatura... perseguindo e sendo perseguida por ela. “quando as pessoas não dormem” é meu segundo livro de contos

  • Livro de contos
    Dimensão: 12x18 cm
    104 páginas.

    * imagem ilustrativa

bottom of page