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Livro de contos.

 

Sinopse: O Menino da Rua 3, é um livro de literatura periférica, que narra a vida de uma criança que tem sua infância roubada pelas dificuldades impostas pela pobreza. Tendo como principal companheira a fome, um barraco de alvenaria de apenas um cômodo dividido entre ele, sua mãe, baratas e ratos. A única visita constante na residência é a falta: de comida, de perspectivas, de possibilidades. A Rua 3 é ao mesmo tempo seu lugar de refúgio e desavenças, o seu espaço de existir e resistir. O Menino vai crescendo em meio a miséria, exploração do trabalho infantil, alcoolismo, fome e a vontade de viver. Um Quarto de Despejo revisitado, separados um do outro por apenas algumas décadas, mas aproximados pela fome: de existir, aceitar, resistir e continuar.

 

Lei um trecho do livro:

 

Hoje é domingo.

 

 

“Hoje é domingo

Pede cachimbo”

 

Acordou com a remela no olho, o barulho do movimento na avenida não o tinha deixado dormi como em todos os domingos de feira livres.

 

Lavou os zói como de costume no tanque de concreto com alguns azulejos quebrados do lado de dentro, a torneira que pingava mesmo que fechada com toda força dava indícios dos seus anos de uso ignorados pelos de casa. Servia tanto pra lavar a cara suja como as trouxas de roupas batidas a mão. Se alguém contemplasse de longe a mulher ali lavando nas mãos os trapos que chamavam de vestimentas logo pensaria ser uma daquelas figuras de mulheres lavadeiras que tanto desenharam e desenham paisagens em rincões esquecidos deste país. Apesar do sangue pernambucano a única coisa que as unia era a pobreza e as palmas das mãos calejadas do bater e rebater.

 

Pegou no buraco encima do batente da porta algumas bitucas de cigarros recolhidos do chão no dia anterior. A parede se destacava não só pela falta do reboco, mas pela camada de gordura adquirida por estar do lado do fogão que só funcionavam duas bocas, parecia que as fuligens tinham preferência por aquele canto da parede. 

 

Cortou o papel de pão dormido que só poderia ser consumido depois de ser aquecido por algum tempo. O papel ia ganhando forma conforme era enrolado depois de ter recebido em seu interior os restos de cigarros.

 

O café requentado foi tomado num gole só, penteou os poucos cabelos e foi ganhar o pão duro do dia para a sua mulher e o filho, que ficaram dormindo no barraco de um cômodo e banheiro externo, o qual só não tinha mais sujeira que o próprio quarto.

 

"O cachimbo é de barro

Bate no jarro"

 

A feira-livre era há alguns metros do barraco, por isso toda aquela barulheira danada de caminhões chegando e o bater de caixas. Não sabia dirigir caminhão nem bater caixas, os ossos cobertos pela pele preta não deixava esconder a formosura da fome como os anos perdidos de vida. Tudo que conseguia fazer era olhar os carros da freguesia da feira livre.

 

Cuidava dos carros da mesma forma que cuidava da cara, mas conseguia algumas moedas e de vez em quando até papel, tudo dependia de como a cara mal lavada estava no dia e do coração do freguês da vez. O que os olhos não veem o coração não sente, mas ele preferia que o coração sentisse, por isso fazia todo o possível para que os olhos vissem. Gritava pra esquerda, mais para direita, pra trás, mais um pouco e a manobra estava terminada, sempre repetia o procedimento tanto quando o carro estava sendo estacionado ou saindo. O dinheiro vinha, o pé de galinha estava garantido.

 

"O jarro é de ouro

Bate no touro"

 

O barulho do vai e vem dos carrinhos de feira levados para cima e para baixo pelos mais velhos indicava que a coisa andava como sempre. O sol já ia longe e a sombra do poste era o seu esconderijo para não ficar mais preto do que já era, não que tivesse problema com isso, era mais uma questão de consciência de ofício. O brilho do sol fazia a visão ficar turva, impedindo a realização das boas manobras, mesmo não sendo ele o motorista, mas pra ele isso não tinha importância, ninguém tiraria o seu mérito por ter evitado tantas batidas e quem sabe Deus o que mais.

 

"O touro é valente

Bate na gente"

 

O homem não quis saber das manobras, se tinha ouvido fingiu não escutar, quando a ordem era pra esquerda fez questão de virar para a direita, na vez da direita virou para a esquerda, na ré andou pra frente e a desgraça estava feita. Veio gente de tudo que era lugar, a dona do bar do outro lado da rua logo gritou:

 

 — Mataram o homem! Acudam pelo amor de Deus!

 

O bêbado que se encontrava no balcão bebeu a pinga não sem antes jogar um gole para o santo pedindo pela alma do novo defunto. Mera liturgia cristã.

 

A nova viúva foi chamada sem demora. Com remelas nos olhos e o cabelo desgrenhado veio chorar a perda do seu. Ela olhava com os olhos arregalados o marido caído no chão quente do sol do meio-dia, pegou um papelão que se encontrava no local e fez sombra para o marido defunto. Sabia muito bem que o esposo não gostava do sol daquela hora. Não era porque estava morto que tinha que queimar no calor do inferno. Ninguém nem reparou na ação da mulher de tão surpresos que estavam com o vestido que a viúva usava, nunca tinham visto nada parecido no corpo daquela gente.

 

"A gente é fraco

Cai no buraco"

 

Ninguém mais olhava ou sequer notava o defunto estendido ali no sol, àquilo era notícia antiga, o que importava agora era saber como a insólita viúva tinha conseguido a roupa. Um burburinho logo começou e as primeiras acusações foram formuladas:

 

 — Roubou, só pode ser!

 — Que nada, dever ter ganhado da patroa.  —uma voz mais gentil tentou argumentar.

O Menino da Rua 3

SKU: Herivelt01
R$ 45,00Preço
  • Nascido na cidade de São Paulo, desde sempre viveu as diferenças sociais da velha Piratininga. Preto de cor, branco de dinheiro. Aos trancos e barrancos conseguiu estudar, naquilo que os pais não tiveram muita sorte (mãe analfabeta, pai semianalfabeto). Entre a divisão de um ovo para matar a matemática da fome com os familiares e  safanões  de incentivos para estudar, foi o primeiro da família de cinco irmãos a terminar o ensino médio. Em mais uma amostra de bico empinado conseguiu forma-se em história, o que lhe tornou um besta arretado. Participou das coletâneas “Não Pretendia Criar Discórdia” e “(B)Ecos Periféricos". Atualmente trabalha como professor na rede municipal de São Paulo. Sobreviveu a um genocida, a uma pandemia e a um câncer, hoje vive entre sonhos literários.

  • Contos
    Dimensão: 14x21cm
    170 páginas

    *imagem ilustrativa

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