Co-edição com a Editora Patuá.
Sinopse: Estes relatos dissolúveis de Vanessa Gonçalves performam uma cartografia dos encontros. Somos quase cúmplices das memórias desveladas em relações passadas, nas desventuras de mulheres mães, mulheres avós, mulheres filhas, mulheres que se perdem em mensagens e noites, imaginárias ou não, entre carnavais e são joãos. A autora se faz próxima, sua linguagem convida, sussurra, tropeça, sorri, “como se o mundo fosse acabar entre frevos e bandolins”. Dissolvendo memórias nos acidentes de afetos e desafetos, compartilharmos sua cartografia, percorrendo com os textos as fronteiras porosas do tempo e do espaço. Os atravessamentos do cotidiano revolvem amores, perdas, poesia e uma feminilidade cônscia de sua sempre necessária reafirmação. Um corpo território que, embora se abra em convites e sorrisos, sabe erguer suas cercas e demarcar limites, “estender as linhas do seu corpo até as linhas do corpo do outro, borrar fronteiras ou apagar”. ( por Luciana Tiscoski)
Lei um trecho do conto "bocas":
"Essa é a história dessa boca, sim, porque há histórias por trás das bocas, olhos, ouvidos, sexos que decompõe os corpos e que aprendemos a odiar e amar na medida em que essas histórias se revelam. E elas se revelam em coisas insignificantes que acontecem num dia insignificante em que, perdidos na frente do celular, checamos mensagens ignoradas sem querer ou de propósito. Então quando ela recebe a mensagem que boca linda, eu beijaria essa boca um mês inteiro sem parar, ela a lê e ri. Não pela cantada barata, mas pela história que faz lembrar. A história do amor pela própria boca.
Aos 12 anos, na adolescência miserável vivida numa periferia da cidade, resolveu que ia ganhar algum dinheiro. Resolveu que limparia a casa da avó porque a mãe não a queria limpando chão de estranhos “Estudar! É isso que você vai fazer pra não ficar feito eu esfregando a casa dos outros!”, disse isso numa tarde em que levou a menina para uma casa de família que cuidava às terças. A avó não era uma estranha, pensou. Em troca, ela deixava que escolhesse uma blusinha na revistinha da Hermes ou um gloss na da Avon. Era um modo de dinheiro. Pois bem, a avó.
Uma senhora que tinha uma vaidade que a enchia de orgulho. Cabelos claros e olhos verdes, muito melhor que a gentinha que morava naquela vila, ela dizia. Destoava das pessoas negras, pardas, descendentes de indígenas, indígenas que ali construíam suas histórias e misérias cotidianas. A avó, como o pai da menina que um dia foi embora sem adeus e para nunca mais, contava histórias. E isso fazia dessa menina-mulher uma boa ouvinte de histórias, e porque gostava de ouvir histórias, tentava amar essa figura. Essa senhora tão branca, tão clara, tão de olhos verdes, destoava daquela gente que a menina não queria ser, e era. Era nos cabelos da bisavó índia, na história da tataravó negra laçada pelo seu senhor branco, cujo filho gerado viria a ser seu bisavô, retirante dos sertões de Minas Gerais. Era feita daquelas gentes todas.
Essa avó gostava de humilhar “Vagabunda, será uma vagabunda como a tua mãe que teu pai abandonou!”. Ela gritava isso no quintal em dias de raiva, quando a menina, sem querer, quebrava um copo ou um prato enquanto limpava a casa, na espera de uma blusinha ou um gloss. Era o modo como ela amava, dizia a mãe da menina que tentava também amar a própria mãe. A avó, a mãe, a menina tentando amar umas às outras nas suas frustrações, nas suas dores, nas suas maldições de mulheres sujeitadas. [...]"
dissolúveis
Vanessa Gonçalves: mãe, editora, professora, produtora cultural e, ainda em 2022, se lança escritora com seu primeiro livro de contos "Dissolúveis", (Editora Patuá & Rizoma) . Graduada em Letras com habilitação em Literatura, atua há dezesseis anos na Educação e há 6 anos nas áreas de editoração e agenciamento de projetos culturais. Desde 2015 trabalha com produção cultural e projetos sociais e culturais na cidade de Itajaí-SC. Em 2020 idealiza e funda a Editora Independente Rizoma Projetos Editoriais, em Itajaí-SC, pela qual já editou e produziu mais de 14 livros de contos e poesias. Seu foco quanto atuação cultural são as atividades voltadas para a Literatura (produção e formação); infância e juventude periféricas e produção cultural.
Livro de contos
Dimensão: 14x21 cm
104 páginas.* imagem ilustrativa